segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

até a francisco sá

A criança sentada no colo da velha não pára de me olhar. Nós três partilhamos um mesmo banco de ônibus. A velha me pergunta se depois do túnel vem a Francisco Sá. Eu respondo que sim e puxo um papo com a criança. Um papo qualquer. Pergunto se ela já sabe ler. Para a minha surpresa, os olhos dela brilham diante da pergunta. Mas quando ela toma ar para responder, a avó é mais rápida.

– Sabe, sim. Ela estuda em um colégio muito bom. É lá em Icaraí, mas é bom. Bom mesmo. Puxado.

Eu pergunto à menina quantos anos ela tem. Seis, ela diz, muito orgulhosa de si mesma. E enche a boca para me contar que aprendeu a ler com apenas quatro anos. Antes que ela possa continuar, a avó se antecipa.

– A gente sempre deu muito livro de história para ela ler. Estimulou mesmo. É por isso que ela é precoce.

A criança me fita com um olhar cúmplice. Ela percebe que eu não me interesso por nada do que a velha diz e que começo a me irritar com as interrupções. Estamos falando a mesma língua, eu e a criança. Depois de cinco minutos de relação, já nos entendemos pelo olhar. Ambas achamos as intromissões da velha um tanto inconvenientes. A única diferença é que ela olha aquilo tudo com a ternura de quem entende a velhice.

Eu encontro uma solução para tirar a velha da jogada. Peço para a menina ler o que está escrito em um antigo ingresso de cinema que acho no fundo da bolsa. Faço isso porque presumo que a velha não vai querer provar para mim que sabe ler. A menina pega o papel e lê, e eu julgo, em voz alta, que ela lê muito bem para alguém que tem seis anos de idade.

Quando não há mais nada para ler no ingresso, eu estou impressionada. É incrível perceber como a cabeça da criança trabalha para juntar as letras de uma palavra. É mais incrível ainda quando ela se surpreende ao descobrir, demorada e delicadamente, o sentido completo das letras quando juntadas.

Eu tinha conseguido afastar a velha da nossa conversa. Ela está bem distraída perguntando ao cobrador se falta muito para a Francisco Sá. A criança, em plena conexão comigo, percebe a brecha e dispara a falar. Me conta que, na segunda série, quatro pessoas ainda não sabem ler, mas que a professora falou que é normal, porque... como se diz? Ela busca a palavra. Eu me delicio vendo que ela procura a palavra certa. Ela quer me dizer exatamente o que a professora dela explicou e eu não vejo a hora de saber.

Quando estou no auge da minha curiosidade, a velha faz mais uma de suas interrupções. A última de nossas vidas.

A Francisco Sá era a próxima. A criança, ainda tentando lembrar a palavra, é puxada bruscamente pela mão. O fim estava próximo. Eu nunca mais saberia, afinal, o que a professora disse sobre as quatro crianças que não sabem ler na segunda série. A avó me diz tchau. Eu tenho a esperança de que menina lembre a palavra enquanto é tempo. Vejo que ela continua buscando na memória, ao mesmo tempo em que é arrastada pela avó até a porta de trás do veículo. Ela me olha a cada passo, ainda tentando lembrar a palavra. Eu a fito com desespero. Xingo mentalmente aquela velha. Xingo todas as velhas do mundo. Xingo a Francisco Sá. Xingo a porra toda.

O ônibus pára no ponto. A criança não lembrou como se diz aquilo. É o fim para nós duas. Ela ameaça voltar para o banco onde eu estou. Talvez queira se despedir, para sempre. A velha a puxa de novo. Ela dá uma breve olhada para a avó e depois olha nos meus olhos. Eu acho que ela vai desabar em lágrimas, pois não consegue lembrar a palavra. É a última chance. Ela nunca mais vai poder me contar aquilo.

A criança começa a desaparecer do ônibus em direção à rua. Assumo a minha derrota. Eu nunca mais a veria.

Mas antes de sumir totalmente, ela me grita:

– Enfim... depois te conto!

E vai embora tranquila, tentando achar a palavra para me dizer no dia em que nos encontrarmos de novo.


desenho de John Lennon

7 comentários:

  1. Seus contos são muito cinematográficos. Você já pensou em escrever roteiro ou fazer um curso na Darcy Ribeiro? Sou fã assumido. Adorei a construção da sua relação com a criança, a necessidade de comunicação entre vocês, a carência da velha, as descobertas da criança, a imagem da criança indo embora e o despreendimento na despedida da menina.

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  2. Uau!!! Valeu, Raolis! Sou sua fã também!

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  3. bom, já disse e repito, façamos luiza, curtas com essa mágica que vc passa tão bem. Teu texto tem classe, até para esculachar a velha, nada do que vc escreve fica feio, vulgar ou excessivo, talento dos grandes cronistas. Engraçada e erudita, tem o dom de seduzir a gente, amo e aprendo!!! Beijos!!!

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  4. Caralho... que FODA, Yabrudi! Não conhecia isso aqui. Vou ler tudo.

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  5. Cris, suas palavras são sempre fodas! não tenho nem o que dizer diante disso. muito obrigada mesmo! e façamos!

    marcelo, que honra ter você por aqui! adorei!

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  6. aconteceu de verdade? eu vi de verdade!

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  7. Vamos atualizar o blogue, vamos?
    =P

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