quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

LA FEMME FATALE

Era o ano de 96, mas podia ser o de 95 ou o de 92. Um daqueles anos que parece que foi ontem, mas se você fizer as contas, vai perceber que era muitos quilos mais magro ou alguma moda mais feio. Um ano que, se você olhar o calendário na gaveta, vai encontrar o papel completamente amarelado. Talvez se depare com uma propaganda de cigarro no verso do folheto. Quem sabe ganhou o calendário numa promoção, quando foi comprar uma caixa de Marlboro no supermercado – um daqueles últimos anos em que estocar cigarro não era pecado. Pelo contrário, era uma tradição cristã, passada de pai pra filho.

Num canto do bar, ela apoiava os seus cotovelos sob a mesa e pousava as duas mãos na mandíbula ossuda e forte. Por causa da força exercida pelas mãos, que empurravam o rosto, suas bochechas rechonchudas suprimiam os grandes olhos negros, quase os fechando por inteiro. O quadro era o de uma mulher entediada, um pouco feia, um pouco bonita, mas que ainda lutava pra se encaixar em qualquer um daqueles adjetivos.

A densa fumaça vinda da multidão de cigarros – às vezes parecia que havia mais cigarros acesos do que pessoas no ambiente – brincava livre no ar, como uma criança que faz desenhos fúnebres no papel e não é repreendida. De um cigarro, o mais depravado de todos os cigarros presentes, voou uma fina névoa que delineou ludicamente o personagem de O Grito, de Munch.

Inspirada pela perversidade de tanta fumaça, ou apenas de saco cheio da imagem em que estava enquadrada, ela moveu uma das mãos que apoiavam a mandíbula para debaixo da mesa e vasculhou a bolsa que repousava em seu colo. Apanhou um batom vermelho com o qual pintou os lábios grossos. Também soltou os cabelos, revelando as ondas que ocasionalmente se transformavam em cachos, que ela escondia com um coque. Levantou-se num estalo e ajeitou o vestido preto que mostrava grande parte dos seus seios. Tirou um cigarro da parte lateral de um dos seus grandes seios, e pediu fogo ao rapaz loiro sentado na mesa mais próxima dela.

Acendeu. Todo mundo tem isqueiro em 96, ou fósforo em 95.

Eu me chamo Brenda, ela se apresentou. (Não posso garantir se havia muitas Brendas em 94, mas é capaz de todo mundo ter se chamado Brenda em 93.) Ele atendia pelo nome de Carlos e os Carlos sempre existiram em qualquer década. Ele comentou que quase não se via nada em meio a tanta fumaça, e acendeu um cigarro também. Pois é, ela concordou, e resmungou que não fazia questão de enxergar nada naquela noite. O Carlos não entendeu, mas não disse a ela que não fazia questão de entender nada que nenhuma mulher dissesse, nem naquela noite, nem em noite nenhuma.

Quer sentar?, ele convidou, eu tô sozinho. Ela sentou, tanto fazia, já eram três da manhã e nada de novo tinha lhe acontecido. Não trocaram nenhuma palavra por dez minutos, ao contrário dos seus cigarros, que conversavam ininterruptamente, discutindo atrocidades a cada tragada.

Você tem os peitos grandes, o Carlos disse, depois de fazer um esforço e conseguir enxergar, em meio à nuvem branca, apenas o contorno dos seios da Brenda. Eu quase não uso, a Brenda confessou. O Carlos acendeu um outro cigarro – quando não se sabia o que falar em 92, ou quando não se queria dizer coisa nenhuma em 97, acendia-se um cigarro. Não é desse jeito que você pensou, é que eu quase não uso decote. Não gosto, me sinto desconfortável, ela ajeitou o vestido. Também quase não uso batom vermelho, você gosta? Ele tragou forte: Tanto faz. Ela respirou fundo o máximo de monóxido de carbono que cabia em seus pulmões.

Quer ir lá pra casa?, ele arriscou. Sim, eu saí de casa querendo transar, era exatamente isso que eu queria, ela pensou. Ela negou, acendendo outro cigarro, e a fumaça do primeiro trago dançou exuberante no ar, mais consistente, mais bonita, mais segura. Ele comentou que as mulheres bonitas que saem sozinhas à noite, no fundo, estão procurando alguém pra dar. E as feias? As feias só querem se sentir bonitas. Eu faço parte de que time? Das inseguras ou das carentes, ele concluiu.

Era bem verdade. Mais do que feia ou bonita, ela era insegura e estava carente. E ele era um machista metido à besta. Mas essa grosseria ela não falou, menos por não querer ofendê-lo, mais por achar que ele não ficaria ofendido com alguém lhe chamando de machista metido à besta – por mais que quisesse, ela nunca dominou a arte de humilhar alguém. Em vez disso, questionou: E os homens que saem sozinhos à noite? Estão procurando boceta, respondeu o oráculo. A vida ficaria muito simples com a objetividade e o pragmatismo de homens como o Carlos, ela filosofou, introspectiva.

Voltaram a ficar em silêncio. Acima deles, fios brancos se desgarravam dos cigarros, formando círculos deformados que gritavam em silêncio, a boca escancarada em direção ao infinito daquele teto rebaixado. Interagiam, libertinas, umas com as outras, num jogo de sensualidade que fazia você ter vontade de ser feito só de fumaça.

Você quer me comer?, ela soltou. Tanto faz, ele disse.

Ela soltou a fumaça pelo nariz.

Tanto faz... Tanto faz. Tanto. Faz. Tanto Faz. Tanto faz?

Ela perguntou: Como assim, tanto faz?. Tanto faz, ele repetiu. Ela não soube o que dizer.

Ele percebeu o estado de choque no qual ela se encontrava. E concluiu: Agora você não vai me dar mesmo. Ela confirmou. Sabe por que?, ele fez uma pergunta retórica, porque você veio aqui buscando um homem que te fizesse sentir a mulher mais especial do mundo, por mais que você tenha consciência de que ele não estará falando a verdade. Ela foi honesta: você tem razão. Bingo!, ele comemorou, e em 92 era tão cafona falar “bingo” em qualquer contexto que não fosse o do jogo como em 90 ou 2009.

As mulheres inseguras vão sempre existir, ele profetizou. E os caras arrogantes, babacas e com pau pequeno também. E mais uma vez ela não disse o que pensou, com o mesmo receio de não ofendê-lo. Em vez disso, tragou forte o Marlboro – era o que as mulheres, inseguras ou não, faziam em 93 depois de uma noite embaçada como aquela.

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