segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

AMOR

uma história que vem à cabeça quando se está quase dormindo: dois personagens construídos em silêncio (pra não acordar ninguém.) um gosto inventado do meu nome na sua boca uma música me olhando mesmo quando eu não estou olhando o (meu) amor é ficção, FRICÇÃO e só.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Soneto de Roma

Esbravejo-te com voz impostada,
filho distante de Vênus – cortado
do ventre –, à tua íris 'cinzentada
imploro que me faça por mandato

tua amante. Rogando por asilo
à escuridão do teu corpo, m’entrego,
confesso, assino, delato e fuzilo
os patrícios; e ainda me nego

a reconhecer que, por mais machista
e selvagem, não fui considerada
bárbara o bastante para a conquista

(ao contrário de Roma, teu amor,
eu nunca cheguei a ser usurpada
por teu impulso civilizador.)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Antes no céu

Obituário

Victor da Costa Maia faleceu na tarde deste sábado, deixando mulher, dois filhos e três netas. E a dona Isa?

1.

Depois da missa de sétimo dia em lembrança do doutor Victor, parentes e amigos seguiram direto para o Chopin. A calçada em frente ao edifício, na Avenida Atlântica, ficou lotada de carros de vidro fumê.

A viúva, ainda abatida por conta dos meses que passou no hospital ao lado do marido, escondia as lágrimas atrás de grandes óculos escuros. Senhora distinta, resolveu receber todos que lhe quisessem prestar apoio e solidariedade na grande sala do apartamento onde morava.

Os familiares que chegavam comentavam sobre a força que a viúva demonstrava. O filho e a filha explicavam aos parentes mais próximos que a mãe tomava aulas de hidroginástica do Copacabana Palace, há três dias, o que a fazia sentir-se muito melhor.

Amigos, colegas de trabalho do doutor e políticos influentes chegavam aos montes ao famoso prédio de Copacabana. Todos confortavam a viúva com abraços e palavras carinhosas. Ao mesmo tempo, elogiavam sua maneira firme de encarar a perda de um ente tão querido.

Quando a sala de estar já estava abarrotada de gente, a viúva resolveu se pronunciar. Agradeceu a todos que haviam comparecido à missa. “Por causa de vocês”, falou, “eu hoje me sinto muito mais forte do que há uma semana.”

Sentada em uma poltrona no canto da sala, dona Isa não parou de soluçar desde a hora que chegou.

2.

“A senhora precisa de ar fresco”, disse a neta mais velha, empurrando para mais perto da janela a poltrona onde estava acomodada a senhorinha, que não se cansava de chorar.

Para os que não conheciam dona Isa, a filha do doutor Victor explicava que ela fora secretária de seu pai durante os últimos trinta anos de sua vida. “Ela gostava muito dele”, esclareciam as netas gêmeas, acrescentando que “o vovô confiava muito nela.”

Mais gente continuava a chegar ao Chopin. Familiares distantes, vindos de outras cidades; amigos de amigos da família; subordinados de Victor que nunca tiveram a oportunidade de conhecer o chefe, mas que admiravam a história do doutor. O marido de uma prima de Minas, sensibilizado com o pranto de dona Isa, disse que gostaria de ter tido a honra de conhecer Victor, e que ela era uma mulher de sorte por ter sido casada com o doutor por tantos anos.

Ninguém notou o mal entendido, e uma fila se formou de frente para a poltrona de onde dona Isa nunca se levantava – e onde derramava suas lágrimas gordas e emitia alguns gritinhos de dor, de vez em quando.

O filho da viúva perguntou a uma moça bem baixinha, que ele nunca havia visto antes, sobre a finalidade daquela aglomeração em volta de dona Isa. Ele quase não compreendeu quando a mulher abriu a boca lotada de canapés e lhe explicou, com uma certa arrogância, que “a fila era para dar os pêsames à viúva, ora.”

3.

Após ser convencido pela mãe de que a mulher baixinha não precisava ser expulsa do apartamento, o filho da viúva sugeriu que dessem um calmante à dona Isa, que chorava por seis horas ininterruptas, o que acabou gerando este mal entendido. Um funcionário que trabalhava diretamente com a secretária do doutor contou que a senhora, na verdade, não parara de chorar por um minuto completo desde que Victor faleceu.

As netas gêmeas, recém ingressadas na faculdade de medicina, ficaram chocadas. A filha mais velha deu um gole no uísque e, agitada, balbuciou pela sala que “isso não é coisa de gente normal.” A cunhada que também ouvira sobre o drama de dona Isa foi até a área de serviço acender um cigarro. Aproveitou e partilhou a informação que acabara de escutar com os outros fumantes que ali se espremiam.

Tornou-se inevitável que boatos sobre um caso entre a dona Isa e o doutor Victor corressem pelos corredores do apartamento do oitavo andar do Chopin. Os presentes começaram a achar estranho o desespero da secretária, contraposto com a firmeza da viúva, agora confundida com rancor. Alguns cochichavam que Isa e Victor se apaixonaram bem antes de o doutor conhecer sua única esposa. E especulavam que os pais de Victor eram conservadores demais para permitirem que ele se casasse com alguém que não pertencesse ao seu nível social, como era o caso de Isa.

A família, ultrajada com tais suposições, tentou proteger a viúva de escutar os rumores a respeito da relação entre o seu falecido marido e a secretária.

Porém, não demorou muito para que uma outra viúva se aproximasse dela, apiedando-se de sua situação. “Comigo foi pior. Descobri quando o Charles ainda era vivo que ele era íntimo do seu João da Matta, o contador. O Charles disse que conheceu o seu João antes de mim. Não tinha como não perdoar.”

A viúva de Victor, escandalizada, resolveu que também se compadeceria da dor de dona Isa: exigiu que convocassem imediatamente o médico da família, e que tirassem a dona Isa dali o mais rápido possível.

Não conseguiram falar com o médico, que estava viajando. De supetão, um homem esguio saiu do lavabo com as mãos ainda molhadas, e propôs uma roda de oração, que foi aceita imediatamente. Os filhos seguraram as mãos da viúva, e uma grande circunferência se formou. Dona Isa, ajudada por dois adolescentes de terno e gravata, juntou-se à roda, ainda aos prantos.

O homem alto tirou do bolso um pedaço de papel dobrado que continha um poema de Fernando Pessoa. Entregou nas mãos da viúva, e pediu para ela ler em voz alta. Enxugando as lágrimas com um lenço que não era seu, dona Isa recebeu o papel das mãos do homem, mas, antes de conseguir abri-lo, desabou no chão.

4.

Não deu tempo para que a viúva de verdade se ofendesse com a gafe do homem esguio. Pessoas afoitas vinham de todos os lados amparar dona Isa. Uma muralha de gente se formou em volta da secretária, e ficou impossível localizá-la no meio da multidão. A ambulância foi chamada. O nervosismo era geral. Alguns anunciavam que a secretária estava tendo convulsões no chão da sala de estar do Chopin. Outros diziam que ela chamava por Victor e dizia que estava indo encontrá-lo. A viúva não conseguia ver nada.

Ouviu-se um barulho de corpo caindo no chão. A multidão em volta de dona Isa gritou. A aglomeração foi se desfazendo e, aos poucos, as pessoas foram se aproximando das janelas.

Lá embaixo, na calçada da Avenida Atlântica, o corpo da viúva, espatifado no chão.

Acontece que ela achou melhor não arriscar – vai que a dona Isa morre ali, agora – e pulou do oitavo andar para chegar antes no céu.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Adolescente,

Revirando o meu armário com a ansiedade
com que uma adolescente procura por uma
roupa específica – igual a todas as outras –,
dou de cara com um envelope amarelado.
De você para mim, estava a memória dos
delírios de nossos dezessete anos.

A carta – adolescente – falava sobre sonhos,
utopia, pôr-do-sol e comunistas. Na carta, não era
utópico acreditar na utopia; na época, nós éramos
seres terrestres cheios de sonhos – adolescentes.

Você explica:
fala que nossos pais,
em outro tempo comunistas,
nos passaram os genes da utopia
(quer nós desejemos isso, quer não.)
E me pede para tentar pegar estrelas com você.

Você diz que eu aprendi – com você, eu completaria –
a levar a sério o lado cafona da vida. E cola com durex
no papel uma foto de um lindo pôr-do-sol.

Em determinado momento do texto,
você me confessa que te irrita o fato
de eu não ter muita esperança em
relação à vida. Avalio que se trata
de uma irritação digna, das mais nobres!

E, enfim, acreditando mais em mim do que
eu mesma, você declara que sou eu o seu
limite entre realidade e surrealidade.

(Penso, hoje, que por todo esse tempo,
você foi a linha entre a graça de uma
foto de pôr-do-sol pregada com durex e a
certeza de que todos os nossos sonhos
adolescentes um dia vão se realizar.)

---

P.S.: Se hoje eu poetizo, é por culpa sua.

P.S.2: Se hoje ainda sou
adolescente,
o mérito é seu.

sábado, 17 de julho de 2010

O mês de Julio

O mês de julho trouxe a chuva ou a chuva trouxe o mês de julho? A única certeza era de que a chuva tinha trazido o Julio de volta.


1.

O Julio tinha entrado no negócio de guarda-chuvas fazia dois meses. Foi em dezembro, ela se lembrava muito bem. Ele largou tudo e montou uma barraquinha na esquina da Primeiro de Março com a Sete de Setembro.

Mas em fevereiro parou de chover no Rio de Janeiro. Ao longo de uma semana, os únicos pingos d’água que caíram do céu foram os que despencaram de algum ar-condicionado sobrecarregado do Centro da Cidade.

Nenhum sinal de São Pedro rondando a Cidade Maravilhosa.

“São Pedro está em cima de São Paulo”, o Julio disse. Ela, que sempre fez cara feia pros trocadilhos dele, não riu. Aí o Julio encheu o saco. Encheu a mala de guarda-chuva e se mandou pra São Paulo. Na terra da garoa estava chovendo desde novembro do outro ano.

Para a surpresa dos mais próximos, ela não sentiu a ausência do Julio. Não era muito de sentir saudades, era o que dizia. Aproveitou aquela tranqüilidade para tirar férias. Passou os quinze dias que não trabalhou deitada na areia da praia de Ipanema. De vez em quando se lembrava do Julio debaixo da chuva de São Paulo e ria de deboche.

2.

Voltou ao trabalho e nenhuma gota de chuva à vista. Nenhum sinal do Julio também. O jornal falava na “maior estiagem no Rio desde abril de 2004”. As conversas triviais sobre o tempo, próprias para se ter no elevador ou entre pessoas desconhecidas, tornaram-se debates complexos em toda mesa de bar da cidade. Em São Paulo, a chuva não dava trégua.

O calor ficou insuportável no Rio de Janeiro. Assim como quase todo mundo, ela passou a checar a previsão do tempo diariamente. Mas era só olhar para o céu para precisar que não viria chuva por um bom tempo.

Então ela se cansou do bom tempo. Começou a sentir falta dos guarda-chuvas do Julio espalhados pela casa.

3.

Num belo dia, parou de chover em São Paulo. O prefeito decretou feriado. O Jornal Nacional transmitiu ao vivo uma grande festa na Avenida Paulista – até que enfim o Julio ia voltar pra casa.

4.

O Julio telefonou no dia seguinte que a chuva parou. Perguntou como estava o tempo. Seco, ela respondeu, seca. Ele avisou que no Maranhão estava chovendo há sete dias e que não tinha previsão de estiagem. O negócio de guarda-chuva estava progredindo. Um beijo.

5.

Merda de cidade que não chove. Ela não se conformava com as enchentes que aconteciam no Acre. Uma injustiça, ela dizia. Já tinha chovido o suficiente no Mato Grosso em outubro do ano passado. Gente egoísta. Chegaram a anunciar, num happy hour que ela freqüentava na Treze de Maio, que o Cristo não queria que chovesse para não estragar seu bronzeado. Ela riu do trocadilho e lembrou-se do Julio. No Rio Grande do Sul, a previsão era de chuva para a semana que vem. Será que as gaúchas são mesmo tão bonitas quanto dizem?

Apesar de todo o sofrimento, poucas pessoas sabiam do seu drama. Quando ela comentou que fazia duas semanas que não parava de chover em Maceió, uma amiga sugeriu que ela comprasse uma passagem de ônibus e encontrasse o Julio lá.

6.

Ela deu como desculpa que, como boa virginiana do dia 25 de agosto, nunca cometeria um ato impulsivo desses. Mas já era junho e ela continuava esperando.

7.

Até que finalmente veio a chuva. Junto com ela, no dia primeiro de julho, veio o Julio – como num trocadilho do destino.

Ela abriu a porta, os braços e sorriu.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

até a francisco sá

A criança sentada no colo da velha não pára de me olhar. Nós três partilhamos um mesmo banco de ônibus. A velha me pergunta se depois do túnel vem a Francisco Sá. Eu respondo que sim e puxo um papo com a criança. Um papo qualquer. Pergunto se ela já sabe ler. Para a minha surpresa, os olhos dela brilham diante da pergunta. Mas quando ela toma ar para responder, a avó é mais rápida.

– Sabe, sim. Ela estuda em um colégio muito bom. É lá em Icaraí, mas é bom. Bom mesmo. Puxado.

Eu pergunto à menina quantos anos ela tem. Seis, ela diz, muito orgulhosa de si mesma. E enche a boca para me contar que aprendeu a ler com apenas quatro anos. Antes que ela possa continuar, a avó se antecipa.

– A gente sempre deu muito livro de história para ela ler. Estimulou mesmo. É por isso que ela é precoce.

A criança me fita com um olhar cúmplice. Ela percebe que eu não me interesso por nada do que a velha diz e que começo a me irritar com as interrupções. Estamos falando a mesma língua, eu e a criança. Depois de cinco minutos de relação, já nos entendemos pelo olhar. Ambas achamos as intromissões da velha um tanto inconvenientes. A única diferença é que ela olha aquilo tudo com a ternura de quem entende a velhice.

Eu encontro uma solução para tirar a velha da jogada. Peço para a menina ler o que está escrito em um antigo ingresso de cinema que acho no fundo da bolsa. Faço isso porque presumo que a velha não vai querer provar para mim que sabe ler. A menina pega o papel e lê, e eu julgo, em voz alta, que ela lê muito bem para alguém que tem seis anos de idade.

Quando não há mais nada para ler no ingresso, eu estou impressionada. É incrível perceber como a cabeça da criança trabalha para juntar as letras de uma palavra. É mais incrível ainda quando ela se surpreende ao descobrir, demorada e delicadamente, o sentido completo das letras quando juntadas.

Eu tinha conseguido afastar a velha da nossa conversa. Ela está bem distraída perguntando ao cobrador se falta muito para a Francisco Sá. A criança, em plena conexão comigo, percebe a brecha e dispara a falar. Me conta que, na segunda série, quatro pessoas ainda não sabem ler, mas que a professora falou que é normal, porque... como se diz? Ela busca a palavra. Eu me delicio vendo que ela procura a palavra certa. Ela quer me dizer exatamente o que a professora dela explicou e eu não vejo a hora de saber.

Quando estou no auge da minha curiosidade, a velha faz mais uma de suas interrupções. A última de nossas vidas.

A Francisco Sá era a próxima. A criança, ainda tentando lembrar a palavra, é puxada bruscamente pela mão. O fim estava próximo. Eu nunca mais saberia, afinal, o que a professora disse sobre as quatro crianças que não sabem ler na segunda série. A avó me diz tchau. Eu tenho a esperança de que menina lembre a palavra enquanto é tempo. Vejo que ela continua buscando na memória, ao mesmo tempo em que é arrastada pela avó até a porta de trás do veículo. Ela me olha a cada passo, ainda tentando lembrar a palavra. Eu a fito com desespero. Xingo mentalmente aquela velha. Xingo todas as velhas do mundo. Xingo a Francisco Sá. Xingo a porra toda.

O ônibus pára no ponto. A criança não lembrou como se diz aquilo. É o fim para nós duas. Ela ameaça voltar para o banco onde eu estou. Talvez queira se despedir, para sempre. A velha a puxa de novo. Ela dá uma breve olhada para a avó e depois olha nos meus olhos. Eu acho que ela vai desabar em lágrimas, pois não consegue lembrar a palavra. É a última chance. Ela nunca mais vai poder me contar aquilo.

A criança começa a desaparecer do ônibus em direção à rua. Assumo a minha derrota. Eu nunca mais a veria.

Mas antes de sumir totalmente, ela me grita:

– Enfim... depois te conto!

E vai embora tranquila, tentando achar a palavra para me dizer no dia em que nos encontrarmos de novo.


desenho de John Lennon

domingo, 24 de janeiro de 2010

Dumbo chumbado no céu


de Rodrigo Arruda e Luiza Yabrudi


Azul, roxo, vermelho, violeta
Uso dedos para vê-los
Toco campainhas de óculos escuros
Britadeiras para perfumar os muros
O volume máximo dos seus negros cabelos
Prefiro mutá-los, para vê-los

Vou listrá-los de uma cor só
Para que frequentemente eu me dane em nós
Uma listra preta entranhada em outra
E uma bem escura contrapondo com uma negra
Confundindo o que é com o que é

Serei o piloto do avião de chumbo
Feito de azul, roxo, vermelho, violeta
Xingarei ao pé do Dumbo
Que decolará de orelhas em pé

Defecando no que é, e no que não é
Definitivamente preto-chumbo
Morre preto-estático o pobre Dumbo

No céu, achei que vi um disco voador
Em terra achei meus fósseis no passado

Só orelhas e outras cores.

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