– Sabe, sim. Ela estuda em um colégio muito bom. É lá em Icaraí, mas é bom. Bom mesmo. Puxado.
Eu pergunto à menina quantos anos ela tem. Seis, ela diz, muito orgulhosa de si mesma. E enche a boca para me contar que aprendeu a ler com apenas quatro anos. Antes que ela possa continuar, a avó se antecipa.
– A gente sempre deu muito livro de história para ela ler. Estimulou mesmo. É por isso que ela é precoce.
A criança me fita com um olhar cúmplice. Ela percebe que eu não me interesso por nada do que a velha diz e que começo a me irritar com as interrupções. Estamos falando a mesma língua, eu e a criança. Depois de cinco minutos de relação, já nos entendemos pelo olhar. Ambas achamos as intromissões da velha um tanto inconvenientes. A única diferença é que ela olha aquilo tudo com a ternura de quem entende a velhice.
Eu encontro uma solução para tirar a velha da jogada. Peço para a menina ler o que está escrito em um antigo ingresso de cinema que acho no fundo da bolsa. Faço isso porque presumo que a velha não vai querer provar para mim que sabe ler. A menina pega o papel e lê, e eu julgo, em voz alta, que ela lê muito bem para alguém que tem seis anos de idade.
Quando não há mais nada para ler no ingresso, eu estou impressionada. É incrível perceber como a cabeça da criança trabalha para juntar as letras de uma palavra. É mais incrível ainda quando ela se surpreende ao descobrir, demorada e delicadamente, o sentido completo das letras quando juntadas.
Eu tinha conseguido afastar a velha da nossa conversa. Ela está bem distraída perguntando ao cobrador se falta muito para a Francisco Sá. A criança, em plena conexão comigo, percebe a brecha e dispara a falar. Me conta que, na segunda série, quatro pessoas ainda não sabem ler, mas que a professora falou que é normal, porque... como se diz? Ela busca a palavra. Eu me delicio vendo que ela procura a palavra certa. Ela quer me dizer exatamente o que a professora dela explicou e eu não vejo a hora de saber.
Quando estou no auge da minha curiosidade, a velha faz mais uma de suas interrupções. A última de nossas vidas.
A Francisco Sá era a próxima. A criança, ainda tentando lembrar a palavra, é puxada bruscamente pela mão. O fim estava próximo. Eu nunca mais saberia, afinal, o que a professora disse sobre as quatro crianças que não sabem ler na segunda série. A avó me diz tchau. Eu tenho a esperança de que menina lembre a palavra enquanto é tempo. Vejo que ela continua buscando na memória, ao mesmo tempo em que é arrastada pela avó até a porta de trás do veículo. Ela me olha a cada passo, ainda tentando lembrar a palavra. Eu a fito com desespero. Xingo mentalmente aquela velha. Xingo todas as velhas do mundo. Xingo a Francisco Sá. Xingo a porra toda.
O ônibus pára no ponto. A criança não lembrou como se diz aquilo. É o fim para nós duas. Ela ameaça voltar para o banco onde eu estou. Talvez queira se despedir, para sempre. A velha a puxa de novo. Ela dá uma breve olhada para a avó e depois olha nos meus olhos. Eu acho que ela vai desabar em lágrimas, pois não consegue lembrar a palavra. É a última chance. Ela nunca mais vai poder me contar aquilo.
A criança começa a desaparecer do ônibus em direção à rua. Assumo a minha derrota. Eu nunca mais a veria.
Mas antes de sumir totalmente, ela me grita:
– Enfim... depois te conto!
E vai embora tranquila, tentando achar a palavra para me dizer no dia em que nos encontrarmos de novo.

desenho de John Lennon
Seus contos são muito cinematográficos. Você já pensou em escrever roteiro ou fazer um curso na Darcy Ribeiro? Sou fã assumido. Adorei a construção da sua relação com a criança, a necessidade de comunicação entre vocês, a carência da velha, as descobertas da criança, a imagem da criança indo embora e o despreendimento na despedida da menina.
ResponderExcluirUau!!! Valeu, Raolis! Sou sua fã também!
ResponderExcluirbom, já disse e repito, façamos luiza, curtas com essa mágica que vc passa tão bem. Teu texto tem classe, até para esculachar a velha, nada do que vc escreve fica feio, vulgar ou excessivo, talento dos grandes cronistas. Engraçada e erudita, tem o dom de seduzir a gente, amo e aprendo!!! Beijos!!!
ResponderExcluirCaralho... que FODA, Yabrudi! Não conhecia isso aqui. Vou ler tudo.
ResponderExcluirCris, suas palavras são sempre fodas! não tenho nem o que dizer diante disso. muito obrigada mesmo! e façamos!
ResponderExcluirmarcelo, que honra ter você por aqui! adorei!
aconteceu de verdade? eu vi de verdade!
ResponderExcluirVamos atualizar o blogue, vamos?
ResponderExcluir=P