terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Antes no céu

Obituário

Victor da Costa Maia faleceu na tarde deste sábado, deixando mulher, dois filhos e três netas. E a dona Isa?

1.

Depois da missa de sétimo dia em lembrança do doutor Victor, parentes e amigos seguiram direto para o Chopin. A calçada em frente ao edifício, na Avenida Atlântica, ficou lotada de carros de vidro fumê.

A viúva, ainda abatida por conta dos meses que passou no hospital ao lado do marido, escondia as lágrimas atrás de grandes óculos escuros. Senhora distinta, resolveu receber todos que lhe quisessem prestar apoio e solidariedade na grande sala do apartamento onde morava.

Os familiares que chegavam comentavam sobre a força que a viúva demonstrava. O filho e a filha explicavam aos parentes mais próximos que a mãe tomava aulas de hidroginástica do Copacabana Palace, há três dias, o que a fazia sentir-se muito melhor.

Amigos, colegas de trabalho do doutor e políticos influentes chegavam aos montes ao famoso prédio de Copacabana. Todos confortavam a viúva com abraços e palavras carinhosas. Ao mesmo tempo, elogiavam sua maneira firme de encarar a perda de um ente tão querido.

Quando a sala de estar já estava abarrotada de gente, a viúva resolveu se pronunciar. Agradeceu a todos que haviam comparecido à missa. “Por causa de vocês”, falou, “eu hoje me sinto muito mais forte do que há uma semana.”

Sentada em uma poltrona no canto da sala, dona Isa não parou de soluçar desde a hora que chegou.

2.

“A senhora precisa de ar fresco”, disse a neta mais velha, empurrando para mais perto da janela a poltrona onde estava acomodada a senhorinha, que não se cansava de chorar.

Para os que não conheciam dona Isa, a filha do doutor Victor explicava que ela fora secretária de seu pai durante os últimos trinta anos de sua vida. “Ela gostava muito dele”, esclareciam as netas gêmeas, acrescentando que “o vovô confiava muito nela.”

Mais gente continuava a chegar ao Chopin. Familiares distantes, vindos de outras cidades; amigos de amigos da família; subordinados de Victor que nunca tiveram a oportunidade de conhecer o chefe, mas que admiravam a história do doutor. O marido de uma prima de Minas, sensibilizado com o pranto de dona Isa, disse que gostaria de ter tido a honra de conhecer Victor, e que ela era uma mulher de sorte por ter sido casada com o doutor por tantos anos.

Ninguém notou o mal entendido, e uma fila se formou de frente para a poltrona de onde dona Isa nunca se levantava – e onde derramava suas lágrimas gordas e emitia alguns gritinhos de dor, de vez em quando.

O filho da viúva perguntou a uma moça bem baixinha, que ele nunca havia visto antes, sobre a finalidade daquela aglomeração em volta de dona Isa. Ele quase não compreendeu quando a mulher abriu a boca lotada de canapés e lhe explicou, com uma certa arrogância, que “a fila era para dar os pêsames à viúva, ora.”

3.

Após ser convencido pela mãe de que a mulher baixinha não precisava ser expulsa do apartamento, o filho da viúva sugeriu que dessem um calmante à dona Isa, que chorava por seis horas ininterruptas, o que acabou gerando este mal entendido. Um funcionário que trabalhava diretamente com a secretária do doutor contou que a senhora, na verdade, não parara de chorar por um minuto completo desde que Victor faleceu.

As netas gêmeas, recém ingressadas na faculdade de medicina, ficaram chocadas. A filha mais velha deu um gole no uísque e, agitada, balbuciou pela sala que “isso não é coisa de gente normal.” A cunhada que também ouvira sobre o drama de dona Isa foi até a área de serviço acender um cigarro. Aproveitou e partilhou a informação que acabara de escutar com os outros fumantes que ali se espremiam.

Tornou-se inevitável que boatos sobre um caso entre a dona Isa e o doutor Victor corressem pelos corredores do apartamento do oitavo andar do Chopin. Os presentes começaram a achar estranho o desespero da secretária, contraposto com a firmeza da viúva, agora confundida com rancor. Alguns cochichavam que Isa e Victor se apaixonaram bem antes de o doutor conhecer sua única esposa. E especulavam que os pais de Victor eram conservadores demais para permitirem que ele se casasse com alguém que não pertencesse ao seu nível social, como era o caso de Isa.

A família, ultrajada com tais suposições, tentou proteger a viúva de escutar os rumores a respeito da relação entre o seu falecido marido e a secretária.

Porém, não demorou muito para que uma outra viúva se aproximasse dela, apiedando-se de sua situação. “Comigo foi pior. Descobri quando o Charles ainda era vivo que ele era íntimo do seu João da Matta, o contador. O Charles disse que conheceu o seu João antes de mim. Não tinha como não perdoar.”

A viúva de Victor, escandalizada, resolveu que também se compadeceria da dor de dona Isa: exigiu que convocassem imediatamente o médico da família, e que tirassem a dona Isa dali o mais rápido possível.

Não conseguiram falar com o médico, que estava viajando. De supetão, um homem esguio saiu do lavabo com as mãos ainda molhadas, e propôs uma roda de oração, que foi aceita imediatamente. Os filhos seguraram as mãos da viúva, e uma grande circunferência se formou. Dona Isa, ajudada por dois adolescentes de terno e gravata, juntou-se à roda, ainda aos prantos.

O homem alto tirou do bolso um pedaço de papel dobrado que continha um poema de Fernando Pessoa. Entregou nas mãos da viúva, e pediu para ela ler em voz alta. Enxugando as lágrimas com um lenço que não era seu, dona Isa recebeu o papel das mãos do homem, mas, antes de conseguir abri-lo, desabou no chão.

4.

Não deu tempo para que a viúva de verdade se ofendesse com a gafe do homem esguio. Pessoas afoitas vinham de todos os lados amparar dona Isa. Uma muralha de gente se formou em volta da secretária, e ficou impossível localizá-la no meio da multidão. A ambulância foi chamada. O nervosismo era geral. Alguns anunciavam que a secretária estava tendo convulsões no chão da sala de estar do Chopin. Outros diziam que ela chamava por Victor e dizia que estava indo encontrá-lo. A viúva não conseguia ver nada.

Ouviu-se um barulho de corpo caindo no chão. A multidão em volta de dona Isa gritou. A aglomeração foi se desfazendo e, aos poucos, as pessoas foram se aproximando das janelas.

Lá embaixo, na calçada da Avenida Atlântica, o corpo da viúva, espatifado no chão.

Acontece que ela achou melhor não arriscar – vai que a dona Isa morre ali, agora – e pulou do oitavo andar para chegar antes no céu.

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