quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Rua Manoel Ferreira


Eles se encontraram na banca de jornal da esquina. Ela estava com desejo de comer chocolate há dois dias, mas não conseguia sair debaixo das cobertas pra ir comprar. Ele estava sem cigarro. “Trocou de marca?”, ela perguntou, vendo o Marlboro Light nas mãos dele. Ele respondeu que estava tentando substituir o filtro amarelo pelo branco, mas que no fim das contas devia dar na mesma, porque ele estava fumando o dobro. Fora a grana a mais que estava gastando.

Foram caminhando juntos, em silêncio, em direção ao começo da rua. “O que aconteceu com a velha do 306?”, ela falou, quebrando o gelo. “Do seu prédio ou do meu?”, ele quis saber. Era a velha que morava no prédio dele e que parecia colecionar pássaros, tinha pelo menos umas dez gaiolas na varanda. “Você não soube de nada? Ela sumiu por uma semana, uma moça ruiva alimentou os passarinhos – coitados! – enquanto ela estava fora. Pensei até que ela tivesse morrido. Mas na terça-feira ela voltou. Numa cadeira de rodas. Queria saber o que ela teve”. Ele não tinha a mínima idéia do que tinha acontecido com a velha. Aliás, nem sabia quem era.

“E o viado do 202, que fim levou?”, ele perguntou. “Do seu prédio ou do meu?”. O viado morava no prédio dela. Ela ficou horrorizada: “Ele é gay? Como você sabe?”. Simples. Nas festas que ele dava quase todo dia, nunca apareceu mulher. “Ah. Ele foi expulso do prédio. O pessoal não agüentava mais o barulho que vinha da casa dele”. Com razão, ele pensou, lembrando-se das vezes que ficou sem dormir por causa da música eletrônica nas alturas.

Ele contou pra ela que o casal que morava no quarto andar (“do meu ou do seu?”; “do seu”) brigava quase todo dia. “Um dia ela tacou um prato nele, que acabou quebrando a porta de vidro que dá pra varanda”. Ela ficou pensando em como as aparências enganam, “eles pareciam ser o casal perfeito”. Aí se lembrou de que o casal de São-Bernardo da executiva que morava no sexto, do prédio dele, acabou de ter uma ninhada de nove cachorrinhos. Ela passou horas na janela namorando os filhotinhos que mamavam nas tetas da mãe.

Chegaram na frente do prédio dela. “Bom, vou subir. Foi um prazer te conhecer. Ao vivo, eu digo”. Ele também gostou muito de vê-la de perto, sem a moldura da janela. E antes de ela sumir pela portaria, ele chamou. “Não vejo sua mãe regar as plantas faz tempo. Aconteceu alguma coisa?”. Ela disse que tinha pintado uma transferência no trabalho. Pra Israel. Mas só por um ano. Enquanto isso, ela estava morando sozinha. E se lembrou de comentar: “A sua namorada que sumiu”. Ele comunicou o término. Os dois ficaram se olhando por alguns segundos. Até ela tomar coragem: “No seu prédio ou no meu?”.


(pra júlia palermo e tomás frota)

15 comentários:

  1. De início parece que eles já tinham se falado, depois eu fui entendendo que a intimadade deles existe porque ambos observam os vizinhos e um observa o outro.
    Gostei muito. O texto é lindo, com destaque para o último parágrafo.

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  2. Hahahaha! Eu amo os seus comentário, Cris!
    Raoni também, adoro quando você comenta!

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  3. ah, que ótimo!! Gostosura de história...

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  4. Luizannn, adorei!! A Manoel Ferreira é uma ótima fonte de inspiração pra se falar de vizinhos mesmo, ficou muito bom o texto! E fiquei super honrada pela dedicatória hihi... Me lembrou um texto do Veríssimo, aquele em os vizinhos sabiam tudo um do outro vendo o lixo haha... adorei, adorei!! beijoss

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  5. só de imaginar, de noite, que cada luz acesa, em cada janela, em cada prédio, pode significar um semfim de coisas. e as apagadas também . . . e de dia também . . .

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Acho que "delicioso" é a palavra perfeita para a sensação que eu tenho ao ler esse texto!

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  8. tá todo mundo sozinho maas junto, adorei!

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  9. luiza, esse teu texto tá tão perfeitinho que não consigo ler sem ver ele encenado, não me prendo às palavras mas ao curta na minha cabeça...muito gostoso mesmo!!!

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  10. Luizitcha! Adorei o texto. Realmente me tocou. Como ex-morador da Manoel ferreira me vi em várias dessas histórias. A banquinha do final da rua realmente rendia várias conversas com os vizinhos que a gente encontrava quando ia comprar cigarro. É como o Guilherme Burgos disse, cada janela daquelas tem um sem fim de significados: comédia, drama, amor... Sabemos da rotina e da vida dessas pessoas que vemos nas janelas vizinhas, em seus cubículos, embaçadas pela distancia, mas muitas vezes nem as reconhecemos quando cruzamos com elas na rua. Todos personagens de uma complicada, porém gostosa, moderna vida urbana. Beijo. Adoro seu estilo. Domingo é dia de Luiza e a Brud.

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  11. Cris, que máximo que você imaginou um curta! Não tinha pensado nisso ainda, mas fez todo sentido na minha cabeça!
    Tomás, fiquei muito lisonjeada com a sua visita, nunca pensei que você viesse aqui ler! Ficar sabendo que todo domingo é dia de vc ler meu blog é melhor ainda!

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  12. To impressionado. Eu sabia que era bom, mas nao tinha nocao que era incrivel.

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  13. Luiza, vamos fazer este curta?
    Aguardo a resposta,
    Beijos

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