segunda-feira, 1 de junho de 2009

páscoa

Depois do almoço de Páscoa, ele se recostou na velha cadeira de balanço e dormiu profundamente. Quando deu por si, já estava escuro. Ainda de olhos fechados, pensou no bolo de nozes que sua esposa fazia tradicionalmente há cinqüenta anos, especialmente para a Páscoa. A festa da ressurreição – ela chamava assim. A data mais importante para todos os católicos, principalmente para os fervorosos como sua esposa. Alzira tinha umas crenças tão bobas, essa coisa de ressurreição, por exemplo. Aonde já se viu acreditar que um sujeito que morreu na cruz vai ressuscitar três dias depois? Vá lá que era Jesus Cristo, grande profeta e coisa e tal, curou leproso, cego, prostituta. Mas se o sujeito fosse tão bom assim, por que esperaria três dias inteiros pra ressuscitar? Ressuscita na hora, então, porcaria! Ai, ai, Alzira. Tão bobinha. Acreditando nessas histórias pra boi dormir. Ela e tantos outros. Como o Juvenal, bom amigo de sempre. Sua cabeça-dura era de doer. Era kardecista, o Juvenal! O velho teve a audácia de dizer, durante o almoço, que, depois que a gente morre, o espírito fica rodando por aí, desencarnado, vendo tudo de cima. Ele disse que todo ser humano vai reencarnar. Ainda bem que a Alzira não ouviu isso, ia ter que rezar não sei quantos terços pra ser absolvida daquele pecado dito por outra boca (maldita) na sua própria casa.

Acordou de novo. Um breve cochilo. Ainda estava escuro. Não sentia vontade de abrir os olhos. Agora pensava só no badejo do almoço. Peixe bom pra burro! A Matilde, filha da Naná, que não sabe o que é bom, veio com essas bobagens de que não come carne de animal, que é pecado. Depois que foi pra Índia voltou desse jeito: fresca que só. Budista safada. A Alzira, coitada, preparando ovo mexido pra madame, enquanto todo mundo enchia o bucho. Aí a maluca resolveu contar que a gente podia reencarnar no peixe. E vice-versa. Papo de hospício, entra por um ouvido e sai pelo outro. O pior é que todo mundo sabe que é só da boca pra fora. Ela veio com esse conversê de castração dos desejos pra cá, sofrimento pra lá, mas todo mundo sabe bem que ela trai o bundão do marido com o tal do Sérgio, sobrinho da Fatinha. Ela com certeza vai reencarnar num peixe. Aquele de rio, que tem nome de mulher safada. Ou vice-versa.

Outro cochilo. Aquele almoço fora pesado, ele não sentia vontade de abrir os olhos, nem sequer de se levantar da velha cadeira de balanço. Lembrara-se agora da Marcinha, sua filha caçula. Ela nunca fora muito esperta, mas depois que casou com o Franklin, o pastor, tinha enlouquecido de vez. Acusar uma criança de quatro anos de ter o diabo no corpo era atitude de uma doidivanas. Ainda mais a criança sendo sua própria filha. Disse que tinha que sair correndo com a criança pra igreja, que não dava pra ficar pra sobremesa, porque senão corria o risco da pequena ir pro inferno quando morresse. Vê lá! Inferno! Que lugar é esse, inferno? Pra ele, o inferno são os outros. Pra ele e pra alguém mais, que ele tinha se esquecido quem. Morreu, babau. Cabou. Já era. Zé-fini.

Acordara de mais uma soneca. Ainda escuro. Mesmo para um velho, estava cochilando demais. Chegara a hora de acordar e, quem sabe, comer o que sobrara do almoço. Abrira, finalmente, os olhos. Tudo escuro. Nenhum barulho pela casa, devia ser madrugada. Era melhor se levantar e acender a luz no interruptor. Estranho. Tentou mover as pernas diversas vezes e elas teimavam em não responder. Talvez câimbra. O doutor Felício ensinou uma massagem para essas horas. Mas as mãos também não queriam se mover. Nem o rosto, nem a boca, nem o pescoço. Nada mexia. Estava paralisado e não conseguia nem sequer gritar. O desespero tomou conta dele por inteiro. O jeito era esperar até de manhã. A Alzira chamar o doutor e tudo voltar ao normal. A sorte é que poderia esperar dormindo, pois o sono já o tinha pegado de novo.




Acordou na manhã seguinte. Tudo estava claro, a luz do sol era fortíssima, quase o cegava. Já conseguia mexer pés, mãos, tudo. Mas seu corpo jazia imóvel na cadeira de balanço e a Alzira chorava. O doutor Felício a consolava.

Não chora, Alzira. Por favor. Reza. Reza pra eu não virar badejo.

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